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Cidades como antagonistas em games têm um significado bem perverso

16 Bits da Depressão

03/09/2020 09h00

Reprodução

 

E conheceu Caim a sua mulher, e ela concebeu, e deu à luz a Enoque; e ele edificou uma cidade, e chamou o nome da cidade conforme o nome de seu filho Enoque;
Gênesis 4:17

 

Por definição, cidade seria uma estrutura feita para comportar aglomerações humanas em uma área geográfica circunscrita, destinadas à moradia, práticas culturais e demais atividades empregadas na manutenção da população naquele espaço.

A ideia de cidade como um refúgio de ameaça exterior está presente na constituição da primeira cidade da humanidade, segundo a Bíblia. Com o sangue de Abel nas mãos e amaldiçoado por Deus, Caim parte para a terra da fuga (Node) ao leste de Éden, onde conhece sua enigmática esposa.

Eles então começam a realizar um trabalho que seria o embrião para SimCity 2000, alguns milênios depois. Assim, eles edificaram uma cidade batizada com o nome do primeiro filho deles: Enoque (assim como todo jogador também faz com sua criação, não é mesmo?).

Ainda na bíblia, temos exemplos de Sodoma e Gomorra, cidades cujo suposto mal proliferante entre seus habitantes acabaria conferindo uma perniciosidade intrínseca das construções – em consequência, mesmo que por metonímia substituindo seus habitantes, são as cidades que são o objeto de aniquilação.

Nem a maior das catástrofes aleatórias de SimCity faria uma destruição tão completa, não só de uma, mas de duas cidades ao mesmo tempo.

E condenou à destruição as cidades de Sodoma e Gomorra, reduzindo-as a cinza, e pondo-as para exemplo aos que vivessem impiamente;

2 Pedro 2:6

Sodoma e Gomorra em chamas, pintura do século XVII por Jacob de Wet II

 

A mitologia grega também ilustrava cidades como lares de vilões perversos. Algumas você deve até ter visitado enquanto jogava Assassin's Creed Odyssey e nem percebeu.

Telépita, cidade localizada na Lestrigônia e descrita na Odisseia, é a fortaleza  do rei Lamos; um gigante canibal descendente de Hércules que quase dizimou os homens de Odisseu após ancorar em suas terras.

Ao todo, onze embarcações foram completamente destruídas e apenas o navio do herói se manteve inteiro – suficiente para ele desancorar-se em fuga.

Confronto entre Lestrigões e tripulantes da frota de Odisseu

Também há diversos exemplos de cidades como refúgios de malfeitores na cultura pop, e claro, com os videogames incluso.

Isso possivelmente ocorre porque vilões são muito mais imponentes e intimidantes quando estão estabelecidos em algo próximo de uma cidade cuja população pode servir como exército e, as construções, como fortes.

Seria difícil imaginar uma jornada épica e heroica com um antagonista errante e vulnerável ao léu – o contrário é carimbado nas principais obras; vilões bem estabelecidos, com aspirações por expansão e fortificação territorial.

O Vingador (Caverna do Dragão), Sauron (Senhor dos Anéis), Esqueleto (He-Man), Thulsa Doom (Conan, O Bárbaro) e Koppa (Super Mario Bros)  são alguns exemplos que usufruem do territorialismo.

Um arquétipo interessante de vilão é aquela que é influenciado pelo lugar em que está. Vejamos o exemplo de O Iluminado, livro de Stephen King.

Nele, o vilão dentro do protagonista se revela apenas sob determinadas condições a partir de eventos em um hotel aparentemente assombrado.

Para o leitor pode restar uma dúvida: seria uma insanidade provocada pelo local ou apenas manifestada ali? As diferentes possibilidades fazem com que o antagonismo flutue entre o personagem e o hotel, entre uma mente doentia e uma ocorrência paranormal.

Estes são questionamentos comuns aos jogadores da franquia de jogos Silent Hill, valendo citar que há diversas referências da obra de Stephen King neles.

Nos oito jogos da série e nos dois filmes, por vezes a cidade coberta de névoa alterna o antagonismo com protagonistas e demais personagens que surgem ali.

Quando ocorre a assimilação daquela localidade com um purgatório, ainda assim pode permanecer a dúvida: o purgatório é o mal ou mal é aquele que precisa pagar penitência no purgatório? Existe redenção e salvação ou apenas há punição eterna?

Reprodução/16 Bits da Depressão

Ao contrário de Silent Hill, Raccoon City, cidade fictícia da franquia Resident Evil, é apenas um palco onde o corporativismo negligente desencadeia incidentes bioterroristas – mesmo que sua assimilação seja indistinguível da tragédia, ela está mais próxima da vítima do que está do vilão.

O mesmo ocorre com a cidade de Brasov, situada na região histórica da Transilvânia, ela apenas serve como residência para um dos mais sanguinolentos vampiros da literatura: o Conde Drácula.

Mas estamos começando a fugir muito dos games, então vamos voltar.

Divulgação/Capcom

A lore local das cidades de Yharnam e Blighttown, respectivamente apresentadas nos universos de Bloodborne e Dark Souls, implicam em um perigo que é indissociável daquelas localidades.

Não apenas pelas criaturas que ali habitam, Yharnam pode ser uma coadjuvante na morte de seu personagem ao encurralá-lo contra inimigos e Blighttown possui o abismo mais engolfante da trama.

De um lado, uma cidade composta por imponentes construções características da era vitoriana e que, por muitos anos, oferecia uma misteriosa medicina contra a praga, atraindo aventurosos viajantes em busca por uma cura que sequer encontraram e jamais retornaram.

Quanto à cidade pestilenta de Blighttown, trata-se de uma antiga comunidade de mineradores especializados em extração de titanitas que definharam por uma peste local, ainda em proliferação.

Yharnam (Bloodborne) e Blighttown (Dark Souls)

A inospitalidade de uma cidade pode ir muito além das criaturas que ali habitam ou dos fenômenos sobrenaturais manifestados naquele espaço.

Por vezes, os pilares daquela sociedade contém os ingredientes necessários para que o caos reine inevitavelmente. É o caso de Rapture, cidade subaquática que é peça central no jogo Bioshock.

O emblemático discurso do criador do lugar, Andrew Ryan, deixa claro que ali seria uma utopia capitalista que serviria ao bem comum sem nenhum tipo de intervenção estatal, religiosa ou externa, onde uma filosofia ultra-individualista é colocada em prática.

O homem não merece aquilo que conquistou com o próprio suor?
Não, diz o homem em Washington, pertence aos pobres.
Não, diz o homem do Vaticano, pertence a Deus.
Não, diz o homem em Moscou, pertence a Todos.
Eu rejeitei essas respostas.
Em vez disso, eu escolho algo diferente, escolho o impossível
Escolho… Rapture.

Rapture, cidade subaquática do universo de Bioshock

A ideia funcionou bem por alguns anos, no entanto, bastaram alguns conflitos de classes e disputas por poder para que a utopia se tornasse uma distopia apta para o darwinismo social – ainda sob a recém tentativa de retomada de ordem com aspectos ditatoriais.

Em suma, seria difícil conceber algum vilão capaz de provocar atrocidade comparável com o que esta cidade proporciona a seus habitantes, mesmo que de forma não deliberada por seu projetista.

Talvez essa tragédia ocorrida em Rapture teria sido evitada se Andrew Ryan consultasse o contemporâneo projetista de Brasília, Lúcio Costa, que costumava dizer:

A única certeza do planejamento é que as coisas nunca ocorrem como foram planejadas.

Lucio Costa, projetista de Brasilia

 

 

 

 

 

 

 

 

A propósito, não haveria melhor exemplo de cidade que desempenha papel antagonista em nosso cotidiano. Bom, vamos deixar este assunto para outro texto e outro blog.

Sobre o Blog

Diversão, alegria e jogos eletrônicos! Ou decepção, sofrimento e um pouco mais de jogos eletrônicos? O 16 Bits da Depressão vai abordar os assuntos que estão em alta no universo gamer, sempre com muito bom humor e poucos pixels.