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As diferentes perspectivas da morte vistas em Final Fantasy IX

16 Bits da Depressão

19/08/2020 09h00

Um gosto precoce da morte não é necessariamente uma coisa má Charles Bukowski

O nono título da série principal de Final Fantasy chegava ao PlayStation há pouco mais de 20 anos, em 7 de julho de 2000. Mesma data do lançamento do PSOne, versão compacta que garantiu alguma sobrevida ao primeiro console da Sony, batendo as vendas do recém lançado Playstation 2 naquele ano.

Chegando no fim de uma geração marcada por erros e acertos na transição de pixels para polígonos e cartuchos para CDs, o jogo pôde se valer da experiencia acumulada na produção de seus dois predecessores imediatos para alcançar uma ótima qualidade técnica dentro dos limites do console.

Contudo, ele destoava tanto das ambientações futuristas dos Final Fantasy VII e VIII como da caracterização de seus personagens: Final Fantasy IX voltava à fantasia medieval dos primeiros jogos da série e trazia personagens com formas variadas num mundo que parece ter saído das ilustrações de um bom livro infantil.

O próprio protagonista -um ladrão amigável, bem humorado e movido por um interesse genuíno em ajudar aqueles ao seu redor- destoa dos taciturnos e ensimesmados protagonistas dos sétimo e oitavo títulos da série.

Final Fantasy IX (Divulgação/Square Enix)

 

A intenção do produtor Hironobo Sakaguchi era uma retomada de motivos e nuances presentes nos seis primeiros títulos da franquia, criando algo que se aproximasse do seu ideal de como um Final Fantasy deveria ser.

Assim, além de alusões diversas e frequentemente bem humoradas a eventos e personagens dos Final Fantasy anteriores, tínhamos de volta classes mais definidas de personagens, motivos relacionados a cristais sagrados e outras características dos primeiros jogos da série.


Dentre os temas envolvidos no enredo dessa fantasia cartunesca se destaca a temática universal da consciência da morte.

É desse tema e sua abordagem no enredo do jogo que trata este artigo, tendo como leitores ideais aqueles já conhecem a trama do nono Final Fantasy ou possuem uma ligeira noção do que é abordado no título.

De Aeris a Vivi

Associar as ideias de morte e Final Fantasy pode trazer à mente de muitas pessoas o assassinato da personagem Aeris no Final Fantasy 7: a cena é tão famosa que mesmo algumas pessoas que não jogaram a conhecem, e causou comoção num grande número de jogadores.

Porém, a interrupção de uma vida não necessariamente traz o tema do seu esgotamento natural ligado a uma interpretação da sua existência.

Essa exploração temática só vai acontecer mais intensamente em Final Fantasy IX, sobretudo no contraste entre dois dos seus personagens: o mago Vivi, membro do grupo controlado pelo jogador, e o vilão Kuja.

Cena pós-morte em Final Fantasy VII (Reprodução)

 

Vivi é um mago negro, o que nesse jogo não é só uma classe, mas uma das raças que povoam o mundo. Uma raça artificial: autômatos criados a partir da névoa mística que cobre a superfície do continente mais populoso (e que mais tarde descobrimos ser subproduto da alma dos mortos que o vilão Kuja impede de seguirem seu ciclo).

Esses magos são produzidos em massa e utilizados como armas, "drones" de combate sem uma consciência própria.

Vivi Ornitier, o mago negro de FF IX (Reprodução)

Ao encontrar os outros magos negros, Vivi imediatamente reconhece a sua familiaridade com eles, já que partilham da aparência clássica da classe "black mage" dos primeiros Final Fantasy.

Porém, Vivi é menor, a ponta do seu chapéu pende para baixo e suas costuras são aparentes, um aspecto mambembe que ecoa as maneiras desajeitadas e tímidas do personagem.

Só que a principal diferença está na consciência de si: enquanto os outros magos se comportam como autômatos, Vivi é uma criança senciente e ingênua.

O questionamento do personagem sobre sua existência se inicia no encontro com seus pares, na sua incapacidade de se comunicar com eles e na descoberta de que são seres artificiais forjados como armas para servir à sede de conquista da rainha Brahne.

Final Fantasy IX (Divulgação/Square Enix)

 

A situação se altera quando a Vila dos Magos Negros é descoberta num continente onde não há povoações humanas. Os magos dessa vila eram autômatos que subitamente ganharam consciência e, juntando-se a outros em igual condição, decidiram estabelecer um modo de vida longe dos humanos que os utilizavam.

Apesar de desconfiarem de Vivi por conta dos seus companheiros humanos, reconhecem no pequeno mago um semelhante, um outro "black mage" consciente de si.

Ao explorar a vila, Vivi chega ao cemitério local, um dos poucos cenários do jogo sem música de fundo, e lá os outros magos contam a ele sobre o despertar da sua consciência e uma consequência inevitável disso: a descoberta da própria mortalidade ao notarem que, com o tempo, seus companheiros "paravam de funcionar" sem motivo aparente, sendo que a vida desses seres se esvaía cerca de um ano após a sua criação.

Vivi se descobre um protótipo (daí a diferença da sua aparência em relação à dos outros) que se extraviou num acidente dum dirigível de carga, e é informado que, portanto, pode ter uma "vida útil" diferente do curto período dos demais.

A partir daí a maturação do personagem passa a ser guiada pela consciência da sua própria mortalidade intensificada pela sua iminência incerta: sendo um protótipo de duração desconhecida, ele poderia morrer a qualquer momento ou alguns anos mais tarde, um paroxismo do antigo provérbio latino que diz "a morte é certa, a hora incerta".

E isso faz toda diferença: ter uma vaga consciência da morte embotada pelos eventos cotidianos é algo muito diverso de ter a morte no horizonte imediato de experiência.

A morte como ferramenta de desenvolvimento de personagens

São inúmeras as histórias de pessoas que ressignificaram muitas coisas em suas vidas depois de chegarem muito próximo da sua própria morte ou vivenciaram de perto a de algum ente querido.

Acertar as contas com a própria morte aparece assim como essencial a qualquer processo mais profundo de maturação pessoal. Sendo esse um tema universal, inúmeros sistemas míticos, religiosos e filosóficos o trabalham de alguma maneira.

Na Bíblia, o livro do Eclesiastes diz: "Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, porque naquela está o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração."; no entanto o mesmo texto afirma "[…] louvei eu a alegria, porquanto para o homem nada há melhor debaixo do sol do que comer, beber e alegrar-se".

Esta última citação traz algo do que ocorre no jogo: apesar da recorrência das reflexões existenciais sobre a morte, o jogo não se torna soturno nem perde sua vivacidade e humor.

Muito disso graças ao seu personagem principal: Zidane age como um irmão mais velho para Vivi, guiando-o numa viagem pelo fantástico mundo do jogo onde, aos seus olhos infantis, cada experiência adquire importância memorável.

Além de agir como um conselheiro que impede o jovem mago de afundar na melancolia ao mesmo tempo em que deixa espaço para que o garoto possa experienciar por si seu amadurecimento.

Assim, o enfrentamento do desamparo sentido ao encarar a própria morte acaba por se tornar algo libertador: sabendo da sua finitude e impotência, Vivi pode se libertar das armadilhas do narcisismo e aproveitar ao máximo as boas experiências que suas aventuras com seus amigos lhe proporcionam.

Uma outra ilustração do caráter emancipador desse desamparo é dada na morte da ambiciosa rainha Brahne, apenas ao perceber que não lhe resta nada além da morte ela pode se libertar da sanha de conquista que a consumia e se sentir leve como a muito não era capaz, como ela expressa nas suas últimas palavras.

Kuja: quando não se aceita a mortalidade

Um processo diverso se dá com o vilão principal do jogo: no decorrer do jogo descobrimos que Kuja é um "genoma", raça forjada por Garland, um ser criado pelos habitantes de um planeta chamado Terra.

Os genoma, recusando-se em aceitar o fim do ciclo vital do seu mundo, decidiram deixar suas almas aos cuidados de Garland, que deveria encontrar um planeta jovem, substituindo as almas dos seus habitantes pelas que ele guardava, concluindo, assim, uma assimilação, algo parasitária por parte do planeta decadente.

O mundo a ser assimilado é Gaia, o planeta onde se passa o jogo. Os genomas são seres artificiais criados como futuros recipientes para as almas dos habitantes de Terra, além de alguns poucos que serviriam ao propósito de agir para acelerar as mortes em Gaia. Kuja estava entre esses últimos, um instrumento de Garland para esse processo, o seu "anjo da morte".

Porém, ao presenciar a criação de um novo genoma para substitui-lo, Kuja rebela-se contra seu mestre, rapta o bebe criado e o abandona em Gaia, onde ele vem a se tornar o Zidane que controlamos, ignorante da sua origem.

Kuja, vilão de FFIX

Kuja nutre grande desprezo pelos magos negros que idealizou e pelos próprios pares genomas. Aqui se faz o par antagônico entre ele e Vivi: Ao contrário do mago, Kuja recusa-se a  encarar sua própria realidade, esconde sua raça e origem.

Após Kuja derrotar seu criador ele é confrontado com o fato de que seu tempo de vida é limitado e seu fim é iminente (assim como o dos magos que ele despreza), recusa-se a enfrentar o desamparo resultante e refugia-se no seu imenso narcisismo entregando-se a uma fúria niilista que lembra muito a do vilão Kefka do Final Fantasy 6.

No livro "Final Fantasy IX Ultimania" é explicado que Kuja foi criado já em forma adulta. Nunca tendo passado pela infância (ao contrário de Vivi que está nesse momento) o vilão nunca fora capaz de um desenvolvimento emocional mais profundo.

O que explica, dentre outras coisas, sua ausência de remorso e incapacidade de acertar as contas com a própria realidade.  Transtornado, Kuja destrói o mundo conhecido como Terra e parte de volta a Gaia, o mundo dos personagens do jogo, buscando destruir o cristal primordial que contem a energia vital do universo, destruindo assim toda a existência para que nada sobreviva depois que ele se for.

Depois de enfrentar Kuja e frustrar seus planos, os personagens se veem num local entranho e são confrontados por uma entidade chamada Necron, que afirma ser a "escuridão da eternidade".

Esse ser, o último boss do jogo, diz literalmente: "toda vida traz a morte desde o nascimento. A vida teme a morte, mas vive apenas para morrer. Começa com ansiedade. A ansiedade se torna medo. O medo leva à ira… A ira leva ao ódio… O ódio leva ao sofrimento… A única cura para esse medo é a destruição total. Kuja foi uma vítima do seu próprio medo."

A partir daí essa entidade se propõe a destruir a existência como forma de acabar com esse medo, afirmando que esse seria, afinal, o desejo de toda forma de vida.

Zidane confronta-o com sua vontade de viver a despeito da inevitabilidade da morte e- ao fim da última batalha do jogo- Necron entra em colapso, afirmando ser eterno enquanto vida e morte existirem. E os personagens são misteriosamente transportados para Gaia, a salvo da explosão resultante do colapso da entidade.

Batalha contra Necron

 

De volta a Gaia, num lugar a ponto de ser destruído, os personagens estão prestes a serem resgatados quando Zidane ouve a voz de Kuja dedicando-lhe um adeus. Resoluto quanto a salvar o vilão, Zidane decide partir sozinho enquanto os outros personagens tentam dissuadi-lo devido à iminência da destruição do lugar.

Zidane afirma que, assim como Vivi enfrentou seus medos sozinho, ele também tinha que fazer isso. E parte para encontrar um Kuja caído e prestes a morrer.

O vilão revela que fora ele que transportara os personagens de volta com suas últimas forças, salvando-os, e mostra-se arrependido dos seus atos ao dizer: "depois que vocês me derrotaram, não me restava mais nada, nada mais que perder, então eu finalmente percebi o que significa viver… acho que tarde demais", mostrando que finalmente encarou seu desamparo e foi capaz de desenvolver seu caráter.

Kuja em seu leito de morte

Depois da morte do vilão, as palavras de Mikoto -outra genoma criada com o mesmo propósito- levam o jogador a pensar que, apesar da vilania de suas ações e intenções, se Kuja não se rebelasse os genomas cumpririam seu papel e a vida em Gaia seria destruída por Garland para dar lugar às almas dos antigos habitantes do mundo Terra.

A grande batalha do nono Final Fantasy acaba por ser contra o medo de enfrentar a perspectiva da morte. Foi isso que moveu os antigos habitantes de Terra a criarem Garland e atacarem Gaia, foi isso que levou os magos negros conscientes a ajudarem Kuja caindo na falsa promessa de que ele poderia aumentar-lhes a vida, foi isso que Vivi conseguiu enfrentar e trabalhar, crescendo enquanto personagem.

Por fim, foi isso que Kuja sentiu tão intensamente que acabou por despertar Necron, que mostra ser a encarnação de uma pulsão de morte e nulificação absoluta, e de outro modo pareceria completamente despropositado no jogo, visto que nunca é mencionado em qualquer momento antes de surgir como chefe final.

Viver a vida até a morte

Na animação final vemos o reencontro dos personagens um ano após os eventos passados, enquanto uma voz dirige uma mensagem a Zidane agradecendo por este ter lhe ensinado "que a vida não dura para sempre e é por isso que devemos ajudar uns aos outros e viver a vida em sua completude".

Por fim a voz despede-se dizendo se sentir feliz de ter conhecido a todos e desejar ter vivido mais aventuras com eles, mas "todos temos que dizer adeus algum dia".

Então vemos vários pequenos "Vivis" chegando para juntar-se aos outros, e entendemos que ele encontrara um modo (jamais explicado) de se reproduzir e que dele era a voz que falava: a sua ausência e as suas palavras indicam que sua vida encontrara seu termo natural.

Dado o desenvolvimento do personagem, talvez seja licito imaginar que a seu momento final se pudesse aplicar um poema de Manuel Bandeira que diz:


"Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar."

Duas décadas após seu lançamento, Final Fantasy IX continua convidativo tanto a novos jogadores como a quem o jogou lá no primeiro Playstation.

Isso se deve tanto à diversão proporcionada pela jogabilidade e qualidade técnica (melhorada pelas recentes versões remasterizadas para smartphones, PC's e todos os consoles da última geração), quanto ao seu modo de trabalhar temáticas universais sem perder o humor e a fantasia vivaz e divertida da sua ambientação.

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